Por Felipe Matte Russomanno é advogado da área do Direito de Família e Sucessões
A tecnologia tem modernizado e transformado o direito nas mais diversas áreas, inclusive no que diz respeito ao Direito das Famílias e das Sucessões e na sua interface com outros ramos do Direito. A exemplo disso, uma das questões que mais tem gerado dúvidas e levantado polêmicas é relacionada à herança digital, ou seja, todo o conjunto de bens e ativos digitais que pertencia ao falecido, como redes sociais, blogs e sites, domínios de sites, mensagens de e-mails, contas em sites e aplicativos, milhagens, criptomoedas, assinaturas digitais, entre outros, em função da popularização dessa atividade, muitas vezes geradora de polpudas quantias de dinheiro. O que, afinal, deve acontecer com esse tipo de bem de uma pessoa falecida?
Em primeiro lugar, é importante sinalizar que a herança é um conjunto de bens e direitos aferíveis economicamente. Para ser objeto de partilha, é preciso que o bem tenha importância econômica. Nesse caso, não se enquadrariam perfis em redes sociais ou contas de e-mails de anônimos sem qualquer ganho econômico, uma vez que a pessoa não é efetivamente proprietária do perfil. A questão, porém, torna-se mais complexa ao se levar em consideração que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) incide sobre essas questões. O Facebook, desde 2015, já possui uma opção de indicação de perfil herdeiro, que ficará responsável pela página no caso de falecimento do titular. Ainda assim, a questão oferece entendimentos diversos, com decisões diversas em casos que chegaram à Justiça.
Mas o que deve ser levado em consideração são os perfis e bens que efetivamente geram ganhos. Nessas situações, é preciso observar a propriedade intelectual de obras, como músicas, filmes e livros. Os direitos sobre as músicas da cantora Marilia Mendonça, por exemplo, serão transferidos ao seu herdeiro, e os ganhos obtidos pelas reproduções em plataformas de streaming serão destinados aos seus herdeiros, no caso, o filho (sendo menor de idade, a administração desses bens ficará a cargo de seu representante legal). Isso inclui tanto as músicas da autoria da cantora falecida, quanto todas as reproduções de suas gravações e de outros trabalhos artísticos.
Para além disso, no caso de canais, programas ou qualquer outra atividade em plataformas digitais, é preciso verificar se esta é uma marca devidamente registrada. Se sim, os direitos transmitem-se aos herdeiros de seu titular. É preciso ressaltar que, ainda que as plataformas não liberem o acesso a uma determinada rede social, os ganhos econômicos correspondentes aos perfis dos falecidos devem ser recebidos pelos herdeiros, já que são eles os novos titulares da propriedade intelectual. Isso se aplica a todos que possuem blogs, sites e outros ativos que gerem ganhos econômicos.
Por outro lado, as regras sobre lucros provenientes de jogos e bens digitais presentes nas diferentes redes sociais podem ser diversas. Cada plataforma possui a sua própria política em relação a esse tema. No caso do TikTok, por exemplo, as moedas virtuais e outros ativos digitais da rede social não constituem propriedade nem são transferíveis por morte ou pela lei. No caso das criptomoedas, não há qualquer regulamentação e pairam muitas dúvidas sobre o tema.
Embora haja tentativas de regulamentação do tema, ainda não há uma definição legal sobre a destinação de perfis e outros pontos polêmicos. Atualmente, o PL 3.050/2020 tramita na Câmara dos Deputados e aguarda a análise por parte das Comissões. Da mesma forma, se encontra o PL 6.468/2019 atualmente em tramitação no Senado Federal. Outros Projetos de Lei que buscavam regular o assunto por meio do Código de Processo Civil e do Marco Legal da Internet acabaram sendo englobados a outros ou arquivados, como a PL 1.689/21, que previa que todas as contas em redes sociais poderiam ser controladas pelos herdeiros a partir da mera apresentação do atestado de óbito. Nesse caso, não se pode ignorar que poderia haver lesão ao direito à privacidade e à intransmissibilidade dos dados pessoais, assim como uma transmissão de bens sem o devido inventário.
Por se tratar de matéria relativamente nova, ainda há a necessidade de se aprofundar a discussão sobre o tema, a fim de que se chegue a um entendimento sólido sobre a transmissão dos bens digitais, especialmente diante do conflito que isso pode gerar em relação aos direitos à privacidade ou aos direitos das plataformas sobre os perfis nelas disponíveis. Na falta de um tratamento uniforme sobre a questão, é preciso verificar cada caso para se entender em quais hipóteses poderia haver a transmissão da titularidade aos herdeiros em relação aos bens virtuais da pessoa falecida.
Da mesma forma, a garantia de transmissão dos direitos econômicos aos herdeiros, considerando a monetização das plataformas, também é necessária, mas de maneira clara, considerando as atuais políticas de cada uma delas, sob pena de novas dúvidas e confusões surgirem, trazendo ainda mais insegurança ao assunto.