O direito comercial nasceu da prática do comércio e foi se consolidando pela ação dos mercadores. Os primeiros Códigos comerciais, dentre eles o brasileiro, não se afastaram disso. Essa é a razão pela qual houve a enumeração dos atos de comércio, que consistiam naqueles que eram praticados pelos comerciantes, assim compilados pelo Código Comercial francês, considerado o pai de todos os códigos comerciais modernos. Por retratarem as relações comerciais da época, ficaram de fora desse rol muitos outros atos que se encaixam, perfeitamente, na ideia de comércio no sentido econômico da expressão (a exemplo do ramo imobiliário, da prestação de serviços, da atividade rural etc.).
Tal enumeração não guardava caráter científico. A dificuldade estava, então, em determinar o que seria a matéria compreendida pelo Direito Comercial. Vê-se nos autores antigos um conceito positivista de comércio que nada explica, a ponto de se ter dito que o direito comercial era o direito dos atos e das pessoas que a lei reputava mercantis. Voltando ao tempo, era como dizer “o direito comercial é aquilo que a lei diz que é.”
Essa dicotomia refletiu-se no tratamento jurídico das sociedades em geral: no Brasil elas foram reguladas pelo Código Comercial e, posteriormente, pelo Código Civil. Sujeitavam-se ao regime jurídico do Código Comercial, ou seja, ao direito comercial, as sociedades que tinham por objeto matéria de comércio (assim entendida como aquela abrangida pelo direito comercial); ao direito civil, aquelas que tinham por objeto atividades reguladas pelo Código Civil.
A sociedade de advogados surgiu nesse ambiente. Embora houvesse resistência por parte dos advogados, mesmo antes do nascimento da OAB, em admitir sua atuação por meio de uma sociedade, ante a preocupação de que poderia desvirtuar a essência da advocacia (principalmente em razão do sigilo profissional e da proibição de um advogado poder usufruir do trabalho de outro), o fato é que, nos anos 50 do Século XX, foi constituída a primeira sociedade de advogados, legalmente permitida por força da regra então contida no art. 1.371 do Código Civil de 1916, que previa a possibilidade de ser constituída uma sociedade particular, não só para “executar em comum certa empresa, certa indústria”, como para “exercer certa profissão”. Não por acaso, a iniciativa de sua constituição foi de um diplomata norte-americano, cujo país de origem sempre admitiu a atuação de advogados em sociedade, sem ofensa a questões éticas.
A OAB, após alguma hesitação, acabou aceitando o fato consumado e, no estatuto de 1963, cautelosamente facultou a reunião de advogados “em sociedade civil de trabalho, destinada à disciplina do expediente e dos resultados patrimoniais auferidos na prestação dos serviços de advocacia” (art. 77).
Como se pode observar, a sociedade de advogados tem por fim permitir aos advogados que nela se reúnam para disciplinar o expediente e os resultados patrimoniais que auferirem no exercício de sua profissão. Difere esse enunciado do tradicionalmente adotado pelos nossos códigos. É o que se extrai da redação do art. 981 do Código Civil de 2002, segundo o qual a sociedade é constituída com a finalidade de reunir pessoas “que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e partilha dos resultados.”
Embora o exercício da advocacia hoje seja enquadrado como uma atividade econômica, em contraste com atividades que não produzem resultados para seus membros (associações e fundações), e a sociedade de advogados tenha em mira a distribuição dos resultados entre seus sócios, o fato é que ela se destaca, não pelo fato de reunir esforços ou recursos para proveito comum, mas por ter por principal fim proporcionar aos advogados o exercício de seu trabalho profissional em conjunto e de modo disciplinado (organizado).
À altura já estou a dizer que advogado, que não exerce a advocacia, não pode ser sócio da sociedade de advogados – o que vem ratificado na proibição de que na sociedade de advogados ingresse sócio que não seja advogado.
Esse conceito, contido no estatuto anterior, não se alterou com o advento do Estatuto da Advocacia de 1994, o qual, ao dispor sobre o tema, enfatizou tratar-se de uma sociedade civil (art. 15).
O Código Civil de 2002 procurou eliminar a dicotomia entre sociedade civil e comercial, mas a substituiu por outra, distinguindo as sociedades em empresárias e simples. E a Lei 13.247/2016, ao criar a sociedade unipessoal de advocacia, alterou o art. 15 do Estatuto, que ficou assim redigido: “Os advogados podem reunir-se em sociedade simples de prestação de serviços de advocacia ou constituir sociedade unipessoal de advocacia, na forma disciplinada nesta Lei e no regulamento geral.”
Ou seja, não há dúvida quanto a sociedade de advogados ser uma sociedade simples.
Existiram vozes – e ainda existem – que procuram atribuir às grandes sociedades de advogado, cuja estrutura organizacional assemelha-se a uma empresa, a classificação de sociedades empresárias. Tal orientação não se sustenta por duas razões: a primeira é a de existir disposição expressa de lei atribuindo à sociedade de advogados a qualificação de sociedade simples; a segunda está em que o objeto dessa sociedade é proporcionar aos seus sócios o exercício de atividade intelectual que, a seu turno, também por lei, não se contém na atividade própria de empresário (CC, art. 996).
É bem verdade que muitas decisões de nossos tribunais têm nos ensinado que nem sempre a lei deve ser observada. De qualquer forma – e isso serve para outras sociedades de pessoas que exercem atividade intelectual – é preciso destacar que a distinção entre sociedade empresária e sociedade simples é feita pelo objeto que visam a realizar. E aí se vê que sociedade empresária é aquela que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário – ou seja, uma atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, que não seja intelectual ou rural. Ora, se o objeto da sociedade de advogados é uma atividade intelectual, não há como atribuir-lhe a condição de sociedade empresária.
Não se diga que a sociedade de trabalho intelectual se pode enquadrar na ressalva do art. 966 do Código Civil. Nele não se enquadra pela simples razão de que, se a natureza simples ou empresária é determinada pelo objeto, não há como aplicar a regra do parágrafo único do art. 966 do Código Civil, pois, ao nascer, não se sabe qual será o futuro dessa sociedade, a ponto de a advocacia tornar-se elemento da empresa.
Abro um parêntesis para dizer que mesmo esse raciocínio é viciado, uma vez que elemento de empresa nunca há de ser a própria empresa, mas um elemento, isto é, uma parte da atividade exercida por um ente que exerce atividade econômica organizada, não intelectual ou rural. É o médico num SPA, é um engenheiro numa empresa de construção civil etc. Pelas leis em vigor, a atividade intelectual pura, por mais organizada que seja, jamais será empresarial.
Prosseguindo, quero enfatizar que, afora a total insegurança jurídica, haveria extrema dificuldade em determinar qual o momento em que a sociedade de intelectuais passaria de simples para empresária, obrigando-a a se transferir do registro civil de pessoas jurídicas (ou da OAB) para o registro público de empresas mercantis e a se submeter ao regime jurídico de sociedade empresária.
Isso assentado, observo que, ao participar da comissão que elaborou o Projeto de Código Comercial para o Senado Federal, sugeri, e foi acolhida, a ideia de ser normatizada a sociedade de profissão intelectual, justamente para evitar equívocos, visto que ela possui peculiaridades que nem sempre se resolvem no modelo da sociedade simples.
Como sociedade simples, a sociedade de advogados não proporciona aos sócios a limitação de sua responsabilidade pelas obrigações por ela assumidas e as normas que lhe são peculiares acabam por reforçar tal assertiva. Não é caso, nesta apertada síntese, de analisar os diversos aspectos que pode ter essa responsabilidade. Limito-me, aqui, a relembrar que: (a) na sociedade simples, os sócios são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações sociais, na proporção de sua participação societária, com a possibilidade de ser ajustada sua solidariedade (CC, arts. 1.023 e 1.024); e, (b) como a atividade intelectual é inerente à pessoa natural e essa pessoa, segundo o princípio geral de responsabilidade civil, é responsável pelos atos que pratica, o agir de um advogado, sócio ou não, mas integrante do corpo de advogados de uma sociedade de advogados, atrai para si a responsabilidade por eventual dano causado ao cliente, sendo a sociedade com ele solidária pelo ressarcimento (art. 17 do Estatuto da OAB). Nesse último caso, os demais sócios também respondem, porém em caráter subsidiário e proporcional, pela diferença que faltar para a completa reparação do dano.
Resta uma palavra sobre a sociedade unipessoal de advocacia.
A limitação da responsabilidade do empresário individual surgiu com a finalidade precípua de preservar seu patrimônio pessoal (não afetado ao exercício de sua empresa) ao cumprimento das obrigações assumidas em seu negócio, muitas vezes sujeito a flutuações do mercado e a acontecimentos a ele não atribuíveis. Daí vieram sendo admitidas algumas soluções para sua proteção.
No Brasil já conhecíamos a empresa pública e a subsidiária integral, que não se prestavam para esse papel. Nesta última década, surgiu a figura da Eireli para limitar a responsabilidade do empresário individual, a qual vem sendo equivocadamente utilizada, mas com o beneplácito da Receita Federal, para os intelectuais desenvolverem suas atividades profissionais. Os advogados não tinham e não têm acesso a ela, uma vez que o Estatuto da Advocacia só contempla a possibilidade de ele agir como advogado inscrito ou por meio de uma sociedade de advogados. A Lei 13.247/2016, acima referida, surgiu, então, para introduzir no Estatuto da OAB a sociedade unipessoal de advocacia. Trata-se de um desvario legislativo, embora muitíssimo bem recebido e aplaudido pela advocacia. Não fico atrás e recomendo sua utilização, apesar de se tratar de uma distorção advinda por razões exclusivamente fiscais.
Efetivamente, desconsiderando o fato de a criação de um ente dessa natureza exigir uma duplicidade de registro de um mesmo advogado (sua inscrição para tornar-se advogado e advogar; e o registro de sua sociedade unipessoal para, por meio dela, advogar), cumpre reconhecer que a tributação do profissional autônomo – e o advogado o é – costuma ser bem mais gravosa para seus rendimentos do que aquela que incide sobre os resultados de uma sociedade de advogados. Nesta, o total da tributação atinge a casa de 14% dos resultados do exercício (IR, PIS, COFINS, CSLL etc.), ao passo que o autônomo, além de onerar o cliente, se pessoa jurídica, em 20% sobre os honorários que desembolsa – o que faz com que as pessoas jurídicas (sociedades, associações ou fundações) procurem evitar esse ônus, pagando sempre que possível a outra pessoa jurídica – sujeitam-se à tributação progressiva do Imposto de Renda e, eventualmente, a outros encargos (complementação do INSS, ISS etc.). Dependendo da renda anual, podem ingressar no Simples Nacional, que, conquanto progressivo, engloba todos os tributos federais; nesse sistema, o percentual sobre o faturamento é bastante reduzido.
++++++++++
Por Alfredo de Assis Gonçalves Neto, professor titular em Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná