Existem muitas razões para a desvalorização do trabalho dos médicos, algumas delas possíveis de serem corrigidas, outras apenas atenuadas. Neste artigo abordo uma das causas: a formação precária do oftalmologista.
Muitos atribuem a desvalorização do trabalho médico ao excesso de profissionais no mercado. Realmente, segundo Edson Godoy, ex-dono da Amil, é fácil, para um empresário ganhar dinheiro com a Medicina, pois a “mão de obra” é abundante e barata (médicos) e a “matéria prima” é gratuita (doença).
Há alguns motivos para existirem muitos “oftalmologistas” no Brasil: muitas faculdades de Medicina, o médico formado poder atuar em qualquer área e oftalmologia ser uma área atraente.
Este cenário nós não podemos mudar! Mas a continuação desta sequência sim, pois se o oftalmologista for o responsável pela refratometria, 15 mil profissionais podem ser suficientes, mas se for para cuidar somente de doenças oculares, 15 mil é muito. Uma solução seria, em conjunto com o Ministério da Saúde, criar políticas indutoras para viabilizar a fixação de oftalmologistas nos vazios assistenciais, proposta que expusemos no livro “O Ensino da Oftalmologia no Século 21”.
O problema mais sério é a deficiência na formação do especialista. Estima-se que 2/3 dos médicos que atuam na Saúde Ocular tenham se especializado em Cursos não credenciados pelo MEC ou pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO). Porém, mesmo nos cursos credenciados não há uma uniformização do ensino que permita assegurar o aprendizado adequado, pois o CBO costuma avaliar a estrutura do Curso (vistorias etc.) e o aprendizado (Prova Nacional de Oftalmologia), mas não atua efetivamente para que o Curso ensine melhor.
Muitos cursos não dispõem de docentes em todas as áreas temáticas, ou têm limitações de recursos materiais, como exames complementares, oferecendo uma capacitação incompleta. Se o CBO se envolvesse mais na formação do especialista, oferecendo condições para homogeneizar deficiências técnicas, como: intercâmbio de docentes e alunos, programa didático unificado, grupos de treinamento prático, treinamento de preceptores de ensino etc., além de atrair o interesse de mais alunos pelos cursos credenciados, melhoraria a formação técnica do oftalmologista.
Especialistas com deficiência de formação têm dificuldades em trabalhar de forma liberal e são obrigados a trabalhar para grupos empresariais, em geral, na triagem e sem autonomia, ganhando pouco e sendo facilmente substituíveis. Com evidente prejuízo à população.
O problema não é ter muito curso de especialização, o problema é que os alunos, em sua maioria, não estão sendo bem capacitados. Diminuir o número de vagas de especialização (credenciadas) levaria a maior procura por cursos independentes (não ligados nem ao MEC e nem ao CBO) o que seria ainda pior.
E o grande número de fellows (ex residentes que fazem sub especialização)?
Devolvo a pergunta com outra: Quem é o fellow? Claro que há exceções, mas, em sua maioria, é um profissional recém-especializado que, devido a uma formação inadequada, não se sente tecnicamente preparado para atuar no mercado de trabalho e, tendo alguma condição financeira que lhe permita investir mais dois anos na formação, faz uma subespecialização para dominar, pelo menos, alguma subespecialidade e, diferente do exemplo anterior, não ficar refém do trabalho de triagem em clínicas já estabelecidas. A maioria dos fellows está investindo mais dois anos para compensar deficiências de formação. Se o ensino na especialização fosse de melhor qualidade, muitos dos alunos que fariam fellowships poderiam ir direto para o mercado de trabalho, atuando de forma liberal e independente.
O ex-fellow, que teve uma capacitação deficiente na especialização, também fica dependente da inserção em um grupo de trabalho, pois um profissional que domina somente uma subespecialidade, só consegue atuar em equipes multidisciplinares, que lhe encaminhe os pacientes.
Um dos principais determinantes para a desvalorização do trabalho médico não é o excesso de oftalmologistas em seus consultórios próprios concorrendo uns com os outros, mas, principalmente, grandes empresas de saúde que contratam muitos especialistas, pagam pouco e reduzem custos com a escala, oferecendo pacotes mais baratos para os planos de saúde, com prejuízo para os consultórios liberais e, principalmente, para os clientes.
O problema é complexo, mas uma das soluções para minimizar a desvalorização do trabalho médico é a melhora na qualidade técnica do especialista, pois um oftalmologista bem formado é capaz de trabalhar de forma liberal em qualquer região do país e não ficar somente refém de trabalhar para empresas. Uma vez diminuindo a oferta de “mão de obra”, as empresas de saúde seriam obrigadas a valorizar seus médicos. Pois, se os médicos acharem que estão ganhando pouco ou com pouca autonomia, teriam a opção de se juntarem, sair da empresa e atuarem, inclusive em conjunto, em outro local, praticando uma medicina de melhor qualidade.
Por Newton Kara José Junior, oftalmologista, autor de três livros, entre eles “O Ensino da Oftalmologia no Século 21” (2020). Professor livre-docente de Oftalmologia da Faculdade de Medicina da USP.