O programa de trainee para profissionais autodeclarados negros promovido pelo Magazine Luiza tem como objetivo levar a diversidade racial aos cargos de liderança, pois atualmente, conforme informações prestadas pela própria empresa, apenas 16% dos negros empregados estão na alta gestão.
Porém, no atual cenário de extremismo e polarização política pelo qual passa o Brasil, uma ação que visa diminuir as desigualdades sociais não poderia passar despercebida e livre de polêmica.
Polêmica está que é oriunda de interpretações equivocadas sobre os princípios justrabalhistas em relação ao programa, como a de que se trata de ato discriminatório em razão da cor da pele para contratação de empregado, o que seria vedado pela legislação trabalhista, sendo, inclusive, este o fundamento da ação movida por um Defensor Público da União contra o Magazine Luíza.
A equivocadíssima Ação Civil Pública ajuizada pelo Defensor Público Jovino Bento Junior sofreu diversas críticas em razão do seu objetivo, qual seja, compelir a empresa a deixar de limitar as inscrições para o programa trainee apenas para negros e pardos, bem como, condená-la ao pagamento de danos morais coletivos em valor não inferior a dez milhões de reais.
Após o ajuizamento da ação, a própria Defensoria Pública da União se manifestou por meio de nota, a fim de esclarecer que a opinião daquele defensor público não corresponde ao posicionamento da instituição, que é favorável à política de cotas como instrumento para realização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
A nota oficial da DPU, representada pelo seu defensor público-geral federal, dá ênfase à independência funcional dos defensores públicos federais, no sentido de que, mesmo destoando do posicionamento da instituição, pode o defensor ajuizar uma ação, como a em comento, devido ao respeito à pluralidade de pensamentos e às diferenças de opiniões.
Já o Grupo de Trabalho Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União e a Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos – ANADEP publicaram notas técnicas contrárias à ação ajuizada contra o programa de trainee, vez que o dever daquela instituição é justamente contrário ao objeto da ação, ou seja, cabe a DPU a defesa dos direitos dos necessitados e dos grupos de vulnerabilidade, que é onde se encontra a população negra.
A defesa da empresa está tranquila porque sabe que o programa trainee não fere qualquer princípio constitucional ou a legislação trabalhista infraconstitucional, pois como destacado nas notas supracitadas, trata-se de uma ação afirmativa que visa à inclusão de um grupo de vulnerabilidade social ao quadro dos altos cargos da empresa, ou seja, busca-se a igualdade material entre negros e brancos dentro daquela instituição privada.
Aliás, é importante lembrar que o Ministério Público do Trabalho, principal instituição de fiscalização do cumprimento da Legislação trabalhista pela iniciativa privada, já indeferiu diversas denúncias contra o Magazine Luíza, o que apenas reafirma a legalidade do programa.
Por outro lado, por mais que a empresa esteja tranquila em relação à sua defesa, a Ação Civil Pública é uma oportunidade para que o Judiciário chancele o programa, dando um importante passo em direção ao incentivo para que mais empresas realizem ações afirmativas, possibilitando que futuramente o mesmo ocorra para incluir mulheres aos cargos de gerência e direção, por exemplo, vez que historicamente estes cargos são ocupados majoritariamente por homens.
Os programas de trainee exclusivos para negros são ações afirmativas e plenamente válidas em razão da histórica falta de oportunidades de acesso a empregos, remuneração desigual e dificuldade de promoção para negros em relação à população branca.
É o histórico de vulnerabilidade social do negro que dá a licitude ao programa, não sendo, por óbvio, a solução para todos os problemas de desigualdades sociais e raciais no país, porém, pode ser considerada sim uma pequena vitória em meio a tantas derrotas.
A iniciativa privada não só pode, como deve engajar-se cada vez mais ao combate à discriminação racial, promovendo oportunidades reais para esses grupos de vulnerabilidade, cumprindo assim com o seu papel social previsto na nossa carta magna.
O programa, objeto desses comentários, tem amparo na Constituição Federal, no Estatuto da Igualdade Racial e na Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial.
A constitucionalidade de programas de ações afirmativas que implementam mecanismos de discriminação positiva para inclusão de minorias e determinados segmentos sociais já foi declarada no julgamento da ADPF 186.
Na ADPF, por iniciativa do Democratas (DEM), discutiu-se a constitucionalidade do programa de cotas raciais para ingresso na Universidade de Brasília, abordando ações afirmativas voltadas ao objetivo de remediar desigualdades históricas entre grupos étnicos sociais, com o intuito de promover a justiça social, conceito no qual se encaixa perfeitamente o programa do Magazine Luíza.
Por fim, as políticas afirmativas de inclusão racial não são discriminatórias porque visam cumprir com o princípio da igualdade material previsto no art. 5° da CF/88, buscando superar a desigualdade decorrente de situações históricas.
Portanto, não se pode classificar o processo de trainee para negros promovido pelo Magazine Luíza ou por qualquer outra empresa como discriminatório, porque se trata de um meio lícito para buscar a tão aclamada justiça social.
Por Rafael Humberto Galle, advogado, especialista em Direito do Trabalho, pós-graduando em Advocacia Trabalhista na Escola Superior de Advocacia Nacional – ESA, sócio do GMP|G&C Advogados Associados, coordenador do núcleo de assessoria e consultoria trabalhista e do núcleo de Assessoria e compliance trabalhista. Membro da Associação de Advogados Trabalhistas do Paraná e da Comissão dos Advogados Representantes da Subseção de São José dos Pinhais no Foro Regional de Piraquara.